quarta-feira, 23 de maio de 2012

RELIGIÃO E POLÍTICA SIM; IGREJA E ESTADO, NÃO





A CARTA A SEGUIR, foi extraída do livro Religião e Política sim, Igreja e Estado não - os evangélicos e a participação política de Paul Freston da editora Ultimato na sua abordagem refere-se ao período entre 1989 a 2002. Enviada ao prefeito recém-eleito de Santa Evangélica do Norte. O novo prefeito é evangélico e pertencente a um partido que nunca governou aquele município. Da mesma forma, lá nunca houve um prefeito evangélico, situação muito diferente da de Santa Evangélica do Sul, onde o prefeito, renomado cantor evangélico, está em seu segundo mandato. Primeiro foi eleito pelo Partido da Frente Liberal — PFL, transferindo-se logo para o Partido Progressista Brasileiro — PPB. Pouco depois estava no Partido Trabalhista Brasileiro — PTB e, em seguida, foi para o Partido de Reedificação da Ordem Nacional — Prona. O autor da carta é pastor de uma igreja na capital do Estado.


"Meu caro amigo e irmão, Escrevo estas linhas logo após o meu retorno de Santa Evangélica do Norte, ainda sob o impacto dos últimos acontecimentos. Foi um privilégio estar presente na sua posse e no culto de ação de graças que a seguiu. Quando nos conhecemos, seis anos atrás, você era apenas um jovem militante sindical. Nunca imaginei que um dia fosse chegar a prefeito, e prefeito evangélico. Você, que era ateu e achava que evangélico era a pior coisa que já apareceu neste país! Levou tempo para superar essa idéia, não é? Mas, quando mudou, mudou para valer. Sabe, quando você se converteu, eu, que estava longe, aqui na capital, tinha um certo receio. Temia que você abandonasse a política, renunciasse ao mandato de vereador e mergulhasse somente no trabalho da igreja. Estranho um pastor dizer que temia isso, não é? Mas eu temia, sim, porque você era claramente um vocacionado para a política, mas andava com um grupo de crentes avessos a tudo isso. Esse grupo foi bom para você em muitos aspectos, mas dizia que a única coisa que melhorava o mundo era Jesus no coração e que a política era perda de tempo. Não sabia que Jesus, que deve estar no coração de todos, é também o transformador da cultura. Na época, você não tinha argumentos contra os deles, mas continuou a atividade política como que por costume. Vivia uma vida cindida: na igreja, era o super crente; na política, era o militante de sempre, com a nova identidade evangélica acrescentada, mas não integrada. Ficava uma coisa postiça. Era uma situação que não podia durar para sempre, e eu temia que se resolvesse com a sua saída da política. Felizmente, meus temores não se concretizaram. Você ficou na política (e na igreja!).

 E cresceu nas duas. Agora que o evangelista da igreja virou prefeito da cidade, meu medo é outro. Você vai achar que nunca estou contente! Mas é assim: a política é importante, mas é sempre perigosa, porque mexe com o poder. Relacionar fé e política é como andar na corda bamba; nunca se pode relaxar e achar que já dominou a técnica. Meu medo é outro porque nos últimos tempos você anda com evangélicos que não têm nenhuma rejeição à política. Pelo contrário, acham que são iluminados por Deus para consertar a política. Acham que os evangélicos têm o direito de governar, pelo simples fato de serem evangélicos. Que as promessas do Antigo Testamento a Israel se aplicam aos evangélicos hoje. Estão empolgadíssimos com a sua vitória porque acham que será o ungido de Deus para transformar Santa Evangélica do Norte em protótipo da Nova Jerusalém. Na cadeira de prefeito, você será canal para as bênçãos divinas. “Deus entregou esta cidade nas nossas mãos”, um deles orou no culto de sua posse. Então, meu medo agora não é que você rejeite a política, ou que continue sem integrar a política com a sua fé, mas que você integre fé e política sem tensões, de uma forma ingênua e triunfalista, se esquecendo que todos nós somos falhos e pecadores. Essa turma da teologia do domínio não aprendeu bem a teologia, nem a história. Se os seus primeiros amigos evangélicos demonizavam toda e qualquer política, os seus novos amigos demonizam a política dos outros e divinizam a sua própria. 

Você precisa lembrar que a política é feita por homens e mulheres imperfeitos e pecadores, mesmo que sejam cristãos sinceros. É por isso que precisamos da transparência democrática, de pecadores vigiando outros pecadores, pois na política ninguém é digno de receber uma cartabranca para governar. Esse pessoal faria bem em conhecer um pouco a experiência de dois países onde evangélicos com essa teologia se tornaram presidentes. Na Zâmbia, um evangélico chamado Frederick Chiluba ganhou a eleição para presidente em 1991. Todo mundo ficou contente, porque foi um dos primeiros países africanos a restaurar a democracia. Chiluba, como você, entrou na política por meio da militância sindical. O regime lá era de partido único, e Chiluba acabou na prisão. Lá, ele se converteu. Quando a democracia começou a ser restaurada, ele se tornou candidato da oposição a presidente. Ganhou folgado. Mas as expectativas que o povo tinha foram frustradas. Não demorou para Chiluba começar a imitar o antigo regime. Só não instituiu um partido único. Mas intimidou a oposição, mudou a constituição para seu maior adversário não poder concorrer na eleição seguinte, e agora está querendo mudar a constituição de novo para poder se reeleger pela segunda vez. Desrespeitou os direitos humanos, não cumpriu muitas promessas eleitorais, favoreceu o próprio grupo étnico dele e mergulhou na corrupção. Bem, isso acontece em muitos lugares do mundo, mas Chiluba desmoralizou não apenas a si mesmo; desmoralizou também o cristianismo. Quando assumiu a presidência, ele fez três atos significativos. 

Primeiro, chamou um grupo de evangélicos para fazer uma cerimônia de purificação do palácio do governo, botando para fora os espíritos maus que ele associava ao governo anterior. Em segundo lugar, fez uma cerimônia de unção, inspirada na unção do rei Davi. E em terceiro lugar, fez uma cerimônia declarando a Zâmbia uma “nação cristã”. Dizendo que “uma nação é abençoada quando entra num pacto com Deus”, ele se arrependeu em nome do povo “de nossos maus caminhos de idolatria, feitiçaria, ocultismo, imoralidade, injustiça e corrupção”: Eu submeto o governo e a nação inteira ao senhorio de Jesus Cristo. Ainda declaro que a Zâmbia é uma nação cristã que procurará ser governada pelos justos princípios da Palavra de Deus. A retidão e a justiça devem prevalecer em todos os níveis de governo, e aí veremos a justiça de Deus exaltando a Zâmbia. Parece que Chiluba fez essas coisas influenciado por uma teologia na qual tais atos simbólicos trazem benefícios quase automáticos. Ele disse que a Zâmbia entrou num pacto com Deus e por isso ele está abençoando a nação de tal forma que “vamos deixar de ser um país devedor e nos tornar um país credor”. 

A reação dos líderes eclesiásticos foi variada. Alguns disseram que a declaração de uma “nação cristã” foi um erro, porque não tinha havido um debate democrático a respeito, criaria cidadãos de segunda classe, incentivaria a hipocrisia e traria descrédito sobre o cristianismo. A Zâmbia se tornaria realmente uma nação cristã, disseram, quando cristãos vivessem plenamente a sua fé, e não por meio de uma declaração. Outros líderes evangélicos, porém, ficaram empolgados. Não precisava de debate democrático, disseram, porque o que é bíblico não precisa ser submetido a procedimentos democráticos! Achavam que, já que era “nação cristã”, pastores deveriam ter posições no governo, o governo deveria dar terrenos para as igrejas construírem e a construção de mesquitas muçulmanas deveria ser proibida. Alguns queriam um Ministério de Assuntos Evangélicos, cadeiras cativas no parlamento e acesso ilimitado ao palácio presidencial. Mas, depois de um tempo, mesmo alguns dos adeptos mais fervorosos do presidente começaram a ficar desgostosos. Chiluba convidava pessoalmente alguns evangelistas famosos a fazerem cruzadas evangelísticas no país. O próprio Chiluba falava nessas cruzadas também. Mas, quando ele tentou convidá-los de novo, muitos líderes evangélicos se recusaram a apoiar, dizendo que as igrejas, e não o governo, é que deveriam fazer os convites. 

Você vê que um governo “evangélico” acaba dividindo os próprios evangélicos, porque não há concordância sobre o que é tarefa do governo e o que é tarefa das igrejas. E porque não há dinheiro, favores e cargos suficientes para todos! O maior evangelista da Zâmbia era grande defensor de Chiluba. Mas, depois de certo momento, ele se desvinculou e virou um dos maiores opositores. Fundou um partido e quer se candidatar a presidente, dizendo que “não se deve entregar o país a incrédulos”. Diz que a Zâmbia não é uma nação cristã porque os líderes não vivem segundo as normas do cristianismo. Segundo ele, Chiluba não deveria ter declarado o país uma “nação cristã” até que todos os membros do governo fossem nascidos de novo. O país não precisa de alguém com muita competência e conhecimento para mudar a economia; precisa apenas de alguém com moral e integridade. Alega que Chiluba só mantém o apoio de alguns líderes cristãos porque distribui dinheiro do governo para eles e porque ameaça retirar os passaportes diplomáticos que os principais pastores têm, se criticarem o governo. Percebe como as coisas ficam embaralhadas? Aconteceram coisas parecidas na Guatemala, o país com maior porcentagem de evangélicos na América Latina. Lá, já houve dois presidentes evangélicos. O primeiro era um general extremamente repressivo, que enquanto presidente aparecia na televisão todo domingo para pregar para o povo. Hoje ele diz que, para ele, não havia diferença entre ser chefe de estado e ser ancião de sua igreja: 

“Como presidente, eu apenas ministrava a uma congregação maior”! Ele via a nação como uma megaigreja e o chefe de estado, como um mestre de verdades espirituais. O segundo presidente evangélico era líder leigo de uma grande igreja. Na época de sua campanha para presidente, ele dirigia também uma campanha de batalha espiritual chamada “Jesus é Senhor da Guatemala”. Era uma campanha para livrar o país de uma suposta maldição colocada sobre ele três mil anos antes por causa de religiões pré-cristãs. Como era de uma igreja de elite, os membros alugavam aviões para expulsar os demônios da região que sobrevoavam. Como presidente, ele foi um desastre: não aprofundou a democracia, deu continuidade às velhas práticas de compra de votos e foi corrupto. Aí, tentou um golpe, fechando o congresso e suspendendo a constituição. Não deu certo, e ele teve de fugir para o exílio. Cuidado, então, com esse triunfalismo político evangélico. Cuidado com os evangélicos que se acham capazes de governar! Temos de entender a diferença entre o Antigo e o Novo Testamentos. 

Nenhum país hoje está na posição de Israel no Antigo Testamento. Nenhum grupo pode reclamar um direito divino de governar. Esse pessoal que diz que os evangélicos devem governar nunca promove debates dentro da comunidade evangélica. Como estabelecer um projeto comum? Quais evangélicos estarão no poder? Isso eles nunca discutem. A nossa política pode ser confessional (inspirada pela nossa fé), mas não devemos querer um Estado confessional. Não é bom que o Estado se torne juiz de doutrinas e práticas religiosas. Você também, como prefeito, terá de entender a diferença entre ser um legislador evangélico e um governante evangélico. São papéis diferentes, com implicações diferentes para sua responsabilidade cristã. Como bom governante cristão, você precisará ser neutro entre todas as religiões (inclusive aquelas de que não gostamos), e entre religiosos e ateus. Você precisará perceber, também, a fronteira entre as tarefas de um governante e as de um cidadão evangélico comum.

Chiluba, promovendo cruzadas enquanto presidente, se complicou nesse ponto. Mais uma coisa para terminar: você se lembra daqueles pastores que o atacaram durante a campanha, dizendo que você era candidato do diabo? Pois bem, logo você vai perceber que esses mesmos pastores estão querendo se aproximar de você, tratando-o com (aparentemente) o maior respeito. Sabe por quê? Porque agora você não é mais candidato, mas “autoridade instituída por Deus”. Vão cortejá-lo porque têm uma teologia que quase diviniza o poder; e porque querem estar próximos do prefeito, seja quem for, para não perder vantagens. Mas fique sabendo que, do mesmo jeito que o abraçam agora, podem esfaqueá-lo pelas costas depois. Estou falando, é claro, dos piores entre eles. É possível que alguns outros passem realmente por uma mudança de visão, principalmente se você fizer um bom governo. O importante é você tratar todo mundo igual, mas não acreditar em tudo que ouve. Às vezes se brinca no meio evangélico que a última coisa que se converte é o bolso. 

Mas não é; é o fascínio pelo poder. Você agora é prefeito, é “autoridade”. Mas para mim você continua a ser uma pessoa de pouco tempo na fé, que precisa de discipulado. Tomara que quando deixar a prefeitura você esteja mais maduro na fé do que estava quando entrou. E que Santa Evangélica do Norte seja um pouco melhor também!


Um grande abraço fraterno."

David Sander Soares Pinheiro

2 comentários:

  1. David, meu mano, li o texto inteiro, duas vezes. E te digo sinceramente este texto é um alçapão para enganar os eleitos. A tese principal defendida por Freston é de fato esta: "Cuidado com os evangélicos que se acham capazes de governar!" Eu sou um democrata e trabalho para que a democracia seja plena em suas instituições e no coração das pessoas, mas o que Freston de fato está propondo não é tenha cuidado com teonomistas ou teocratas de plantão, ele está propondo a simples idéia de que evangélicos e politica são incompatíveis. Nas entrelinhas, se encontram o incentivo para deixar as coisas como estão, sem fazer subir o nível. É lastimável ler um texto destes, especialmente porque ele serve as tendências políticas de seu autor, a ideologia de seu partido, de seus comparsas do Foro de São Paulo e do Movimento Revolucionário.

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  2. ‎Gustavo Abadie, meu mano, por respeitar a tua capacidade e entender que teu posicionamento é sim relevante eu te pediria apenas para mostrares neste texto tudo isto que tu pontuas. Não estou advogando Freston, reconheço a cautela que se deve ter e sei que o terreno é delicadamente perigoso, todavia, tenho aprendido na minha caminhada como discípulo de Jesus a discernir tudo e reter o que é bom, entendo que por estar crucificado com Cristo não tenho mãos para levantar bandeiras e por isso também não abraço pacotes fechados e nem ainda empacoto quem quer que seja! Agora é bastante sério o que denuncias aqui, portanto, mais uma vez te peço, pois assim, tu estará me ajudando bem como a todo o esforço que se esta fazendo para dilatar a consciência democrática, especialmente da comunidade evangélica em que estamos inseridos! Quero aproveitar o ensejo e te agradecer, por tua sempre construtiva participação em relação aos nomes de políticos cristãos que ao longo da história tem prestado um serviço importante de construção de uma democracia plena, justa e humana que são os valores do Reino de Deus. Terei humildade suficiente para me retratar e retirar esta publicação, com tanto que me mostre o que tu tens destacado. Eu vi nesta carta uma preocupação pastoral para que os valores do Reino de Deus, neste caso a justiça, não sejam comprometidos por modismos teológicas que além de não possuírem respaldo bíblico nenhum, não auxiliam na formação de uma consciência democrática lúcida e sobre tudo cristã. Também notei uma cobrança para que o serviço público seja desempenhado com definida clareza pois o referido prefeito vinha de mandatos do legislativo (como geralmente acontece no jogo político), todavia somos um corpo e por ser assim, ninguém, em Cristo é pleno em si mesmo e a tua ajuda não é só necessária mas neste caso vital! Um baita abraço!

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